Tuesday, September 11, 2007
 
V/A
Box Of Dub (Dubstep & Future Dub)

Não há melómano que não deseje a próxima revolução. Que não deseje a next big thing. É a necessidade da novidade para estimulação do nervo criativo. Ou a extensão do prazer para além da redundância que a vida contemporânea vai trazendo. Um pouco de cor em dias cinzentos. Em tempos de crise conceptual, o arco-íris será mais desejado que o pote de ouro no seu extremo. E se a paleta tem andado pouco colorida desde os primeiros dias do milénio, é certo que por entre os revivalismos e a redescoberta dos clássicos intemporais, também haja quem procure novos paradigmas que caracterizem esta década.
E não será por acaso que muita da esperança - perdida recentemente -, tenha sido encontrada nos undergrounds dos subúrbios londrinos. A essência original de quem ainda sente a necessidade de quebrar com a pop estabelecida tem sido uma das regras elementares da música de dança desde os primórdios das raves. Segredos bem guardados e a que poucos terão acesso, os ingredientes que constroem a nova música urbana poderão soar estranhos no início. Mas o aperfeiçoamento que o tempo oferece torna num ápice o inacessível em acessível. Assim foi com o house, o techno ou o drum n’ bass. E todas essas linguagens estão hoje em dia perfeitamente estabelecidas no universo pop.
Com o dubstep ainda será cedo resumir o lugar que ocupará na história desta década. O seu lento caminhar têm lhe dado uma segura ascensão. Mas será suficiente para uma completa autonomia estética? A julgar pelo contributo que agora a Soul Jazz Records decidiu dar, pode ser que novas atenções sejam atraidas e que o impulso que ainda esteja faltar seja dado de forma definitiva - para além de Burial e Memories Of The Future, naturalmente. Apesar da relativa contenção que Box of Dub tem para oferecer, os passos são coerentes.
No espectro poderá haver, como esta caixa sugere quando prefere no subtítulo a terminologia Future Dub, laivos de nova experimentação para além da determinada tipologia dubstep. Ou seja, na Soul Jazz não houve a mera tentação de reunir uma mão cheia de temas dubstep de gente já conhecida (Kode 9, Burial, Skream ou Digital Mystikz) e expô-las como sendo a única linha da frente do género, houve, sim, a necessidade de incluir quem por entre a estranha experimentação dub ainda não tenha sido conotada com um rótulo específico. Por entre o que já nos habituamos a ouvir acabamos por encontrar pérolas que soam a novos ensaios estéticos, que devidamente analisados, poderão ser o próximo passo do dubstep.
Bem vistas as coisas, o namoro com esta música não será imediato. Mas uma antologia da Soul Jazz que se digne não deixa por mãos alheias a função didáctica da música que reúne. Os habituais textos são informativos e enquadram o som no tempo. E se com eles apreendemos a origem de tudo, já quem tenha andado atendo à evolução do dubstep em 2006 depressa chegará à conclusão que não há nada verdadeiramente extraordinário nos dois temas de Skream ou Digital Mystikz ou que as incursões de Burial ou Kode 9, apesar de uma maior dinâmica sonora, não vão além do que já conhecíamos. A descoberta dos ensaios de King Midas Sound, de Sub-Version ou de Tayo revelar-se-ão mais interessantes e estimulantes por aplicarem uma subversão digna dos princípios dub e dos roots que Kingston soube oferecer ao mundo. Assim se prova que revolução que a Jamaica nos proporcionou há 30 anos ainda está longe de esgotada. E se assim realmente for, ainda está por escrever o último capitúlo desta história.


NOSTALGIA 77
EVERY THING IS UNDER THE SUN
Ao terceiro disco, Ben Lamdin confirma a perspicácia que o tem lentamente tornado numa referência incontornável do jazz-funk actual. Desde Songs For My Funeral (2004), num tom melancólico entre os ritmos claustrofóbicos de Portishead e a exploração cuidadosa do catálogo da Blue Note, passando pelo brilhante registo fusionista de The Garden ou pelos live-acts representados pelo octeto, que o projecto Nostalgia 77 tem preferido cada vez mais o tom semi-futurista na miscelânea que compõe a calda da sua música enquanto abdica do sentimento evidente de saudade que respirava no início da carreira.
Passar despercebido no caso de Ben Lamdin não significa ser um completo desconhecido. Gilles Petersen é um fã incondicional da sua música e tem com frequência nomeado os álbuns de Nostalgia 77 como registos dignos da mais própria curiosidade dos melómanos. E engane-se quem se deixa ir por etiquetas broken-beat que muitas vezes tem rotulado esta música. Nem ela soa a Neon Phusion ou a Two Banks of Four, nem nunca tentou seguir-lhes os passos no que diz respeito a técnicas contemporâneas de fusão. Mas o espírito aventureiro em Everything Under the Sun encontra-se sem grandes dificuldades. E num momento tão sério que atravessamos onde a originalidade deixou-se vender pelas lembranças de outros tempos, sabe bem descobrir um dos raros casos de escrita criativa e de ousadia estética.
Que fique claro que não se inventa a roda ou o fogo. Mas talvez seja no calor da chama que se encontra a alma de um músico que, não procurando redimir-se, melhora o que outrora não conseguiu aperfeiçoar. O tempo deu-lhe a agudeza de que necessitava. O contacto com outros músicos a experiência que tardava e a improvisação em palco a certeza faltava. Ben Lamdin cresceu em diversas frentes. Tornou-se ambicioso sem nunca extravasar pretensiosismo. No entanto o seu universo sonoro, recheado de ambientes familiares, está longe de lugares comuns. Everything Under the Sun pode soar a Cinematic Orchestra ou a Koop mas também soar a Miles Davis, Charles Mingus ou a Sun Ra.
Entre o sentido urgente de regresso aos clássicos e a necessidade do exercício de libertação espiritual, o quadro aqui eloquentemente oferecido proporciona uma rara narrativa onde a liberdade toma as redias da acção dramática. Não se supõe as consequências para o futuro, apenas que ele ganhará com a magnífica interacção dos músicos falsamente convidados ou as vozes magistrais que enriquecem os conceitos do produtor. Lizzy Parks é prova evidente dessa ideia logo no início do disco (“Wildflower”) quando nos invade o espaço com uma promiscuidade vocal entre Carole King ou Ella Fitzgerald. Uma vez captada a atenção inicial e encontrado o desejo de descoberta, o resto sente-se enquanto a envolvência orquestral nos embala a alma e o ritmo nos massaja a acepção que temos da realidade. Um disco para 2007.


The Cinematic Orchestra e Matthew Herbert
Depois de ouvir só falta imaginar o realizador que há em cada um de nós.
O mundo ainda sonha com a ideia da banda-sonora perfeita. Com as melodias dramáticas envolventes. Com os ritmos de perseguição certos. Com a capacidade de um som modelar apadrinhar a imagem exemplar. Desde sempre houve a preocupação de associar a música a uma imagem e vice-versa. De associar um tom a um sentimento. De colocar a tónica sonora num acontecimento comovente ou numa cena pungente. De rir e chorar, de amar ou odiar personagens fictícias elaboradas com a finalidade criar um universo paralelo para escape da realidade. Aliás é completamente impossível dissociar hoje em dia um filme, uma peça teatral ou um bailado da sua devida banda sonora.
O que seria da história do cinema, e a relação que temos com ela, se Also sprach Zarathustra de Richard Strauss não tivesse sido incluído em 2001 Odisseia no Espaço? Se a arte da composição de poemas sinfónicos de um não tivesse sido inscrita na imagem ficcional de Stanley Kubrick? Talvez a ligação que temos com um clássico incontornável da sétima arte não fosse a mesma. Talvez os sentimentos de prazer durante o bailado espacial não fossem suficientes para gravar na memória tão singular momento estético. Ou o que seria de um James Bond sem um John Barry ou Star Wars sem John Williams? O som com a devida envergadura dramática não só marca o cinema enquanto género artístico, marca também as gerações que assimilaram as histórias e com elas fantasiaram.
Concebido propositadamente, ou não, para um filme ou criado para um filme imaginário e ainda por realizar, as bandas sonoras fazem parte da vida de todos quer haja um filme ficcionado e projectado numa tela ou o filme seja a realidade que nos abraça o quotidiano. E acaba por ser irrelevante se existe ou não uma película. Desde que a música imaginada sirva os propósitos, as próprias imagens surgirão na mente como resultado da sugestão. Cada mente realizará o seu próprio filme. A cada frame seu som. E a cada momento da vida uma trilha sonora.
Certo é que todo o músico ambiciona uma oportunidade de criar a banda sonora perfeita. E as novas gerações têm tido essa oportunidade, seja a The Cinematic Orchestra, Matthew Herbert ou até mesmo os Jazzanova. E algo os tem estimulado criativamente, porque os trabalhos produzidos têm sido na sua maioria eficientes e pundonorosos. Em baixo ficam as opiniões específicas para dois discos recentemente editados que têm o silver screen como alvo. Uns escrevem bandas sonoras de filmes que não existem. O outro faz uma súmula de verdadeiras trilhas sonoras. Vejamos...


The Cinematic Orchestra
Ma Fleur
Um dos exemplos paradigmáticos na elaboração de bandas sonoras imaginárias é a The Cinematic Orchestra que desde 1999 – na estreia que foi Motion – dedicou-se à causa da escrita inteligente onde a electrónica camuflada interagia com o jazz criando ambientes atmosféricos, intrigantes e resistentes tal qual tivessem sido concebidos para um qualquer filme. Desde sempre que Jason Swinscoe e sua pandilha imaginaram imagens inexistentes e compuseram a sua banda sonora. E disso têm feito sua vida, dentro e fora do estúdio. Excepção feita ao único verdadeiro momento de escrita sonora para cinema: a sonorização do documentário russo de 1929 Man with a Movie Camera de Dziga Vertov (que inaugurou o Porto Capital da Cultura).O novo Ma Fleur marca a viragem do colectivo para outros quadrantes. A folk e a pop passam a fazer parte do léxico. A eloquência jazzistica mantêm-se, a humilde ambição de escrita para um filme também. O piano ganha visibilidade num sector folk, tal como a guitarra acústica. Os ambientes melancólicos sentem-se na pele. E as vozes de Patrick Watson ou da repetente Fontella Bass asseguram-se de que o arrepio é eficiente. Ma Fleur é um mimo intimista que muitos estranharão ao início, mas o tempo acabará por provar que a viragem talvez tenha sido a melhor opção num período menos feliz para o nu-jazz e cada vez mais favorável à nova folk. Excelente.

Matthew Herbert
Score
Por seu lado, o proficiente Matthew Herbert, homem capaz das mais invulgares arquitecturas sonoras, nunca escondeu o seu interesse pela composição de bandas sonoras. Os convites para escrita para o grande ecrã não foram regulares, mas houve convites que Herbert não desperdiçou. Juntando agora num único disco todos os temas criados desde Nicotine em 1997 até aos recentemente rejeitados de Manolete, o produtor britânico tem procurado para cada filme um tom caracterizador, independentemente de ser uma curta ou longa-metragem. Nem todos os dias são dias de génio e Herbert também nem sempre faz valer os seus argumentos. Score sofre de problemas de carácter. Sofre de dualidades psicológicas que retiram o brilho ao pensamento. A qualidade da escrita mantém-se, mas não cativa. Os momentos big band estão uns furos abaixo de Goodbye Swingtime. A faceta mais experimentalista de Dr Rockit acomoda-se ao piano e deixa cair o paradigma dramático da imagem. E por fim o próprio Matthew Herbert ignora o estilo de produção - coerente na grande maioria - que o tem caracterizado a ele e ao equipamento de estúdio, avançando de olhos fechados em direcção de terrenos pantanosos que ainda não domina com certeza. Scale (2006) mostrava um produtor abrangente mas integro. Score mostra uma amalgama de personalidades que não revelam a mística necessária para concluirmos que o disco não passa de um colectânea irregular e com poucos motivos de verdadeiro interesse dramático.



MAKOSSA & MEGABLAST
KUNUAKA
Poderia dizer-se que pouco há a esperar de Viena nesta fase. Poderíamos dizer o mesmo de Berlim ou de Paris. E o facto de nada de verdadeiramente relevante nascer nas principais praças europeias nos últimos tempos é bem indício da atrofia criativa que tem invadido o velho continente. Isto em contraste com os últimos anos da década de 90. Do som narcótico de Viena, ao tecno de Berlim ou o french touch, todos ícones de uma década passada, não passam agora de nomes que tanto invocam alguma nostalgia como sinais de um tempo onde a criatividade ocupava o espaço primordial na acção instigadora da arte.
Nunca se poderá dizer que tudo não passou de um sonho breve quando os ciclos na música aceleram de década para década. E como se reciclam modas de forma cada vez mais célere, a cobra tem cada vez mais tendência a morder a sua própria cauda. Não será propriamente negativo que uma linguagem musical outrora rica e agora com pouco poder de comunicação não seja alvo de licença sabática forçada. Agora que as leis do consumo forcem o rápido emagrecimento de mentes férteis e o constrangimento no desenvolvimento natural de diversas estéticas é que já é pouco abonatório para indústria que força a actual conjectura.
Retirar-se espaço ao tempo seria como tirar o tapete violentamente sobre os nossos pés. E como há quem não tenha pressa em crescer, ainda há também quem prefira manter-se fiel aos princípios que outrora enriqueceram as veias criativas de seus conterrâneos. Marcus Wagner-Lapierre (Makossa) e Sascha Weisz (Megablast) souberam envelhecer o seu estilo durante a fase de remisturas. Souberam lentamente criar uma identidade própria sem nunca renegarem o historial sonoro de Viena. E o mais importante: ignoraram o fim de um suposto ciclo, tendo insistido em tudo o que de bom as margens do Danúbio trouxeram ao mundo; sem repetirem as fórmulas de outrora.
Kunuaka marca a estreia dos Makossa & Megablast em trabalhos de longa duração. E se o dub característico encontra novas formas de expressão cénica, o electro ou o house abrem espaço a manifestações funk e afro. As ideias são fortes e expressam-se de forma decisiva por entre ritmos que ora lembram o dub minimal de Stereotyp ou a robustez rítmica dos Rockers Hi-Fi, enquanto elementos híbridos algures entre Cuba e África atribuem rudimentos orgânicos a toda a operação. Não haverá certamente nada de verdadeiramente novo no que por aqui se ouve. Apenas, e uma vez mais, a personalidade adquirida nos clubes de Viena e a sumidade do dub que adquirem estatuto suficiente para erguer uma obra viva, consciente do tempo e do espaço que ocupam. Apesar de seguirem as primeiras pistas sugeridas pelo mítico Dub Club, renovam a linguagem sem quebrar de forma radical os paradigmas sonoros de Viena. Mais um motivo de interesse em 2007 e um dos melhores discos saídos dos laboratórios da G-Stone nos últimos tempos
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DJ MEHDI
LUCKY BOY
Não será um novato na matéria, nem será um completo desconhecido. Envolvido no desenvolvimento estético de um suposto french-touch e tendo produzido ou remisturado alguns nomes durante o período mais estimulante do mais interessante fenómeno musical francês dos últimos anos, Dj Mehdi revela-se agora um artista criativamente maduro e certo do seu papel na cena musical francesa e mundial. Não lhe será alheio a paixão pela velha escola hip-hop e a forma como ela se reflecte na sua arte de produzir beats.
O título começa por frisar a sorte de um rapaz que desde cedo começou por fazer o que a alma lhe ditou. E nada como deixarmo-nos envolver no gosto que Mehdi encontrou para se expressar. O electro-funk mecanizado ao gosto dos b-boys de 84 assalta-nos a memória e obriga-nos a rever o virtuosismo natal de uma cultura que nasceu nas ruas de Nova Iorque. Presentemente, Harry Belafonte talvez não tivesse grandes dúvidas em escolher a "banda sonora" Lucky Boy para um eventual Beat Street contemporâneo.
Não faltarão motivos de interesse electro-funk robusto numa conjectura que neste momento talvez favoreça muito mais os companheiros de editora como Justice ou Sebastian que, pegando no espírito libertino dos Daft Punk de Homework, conseguem fazer implodir um som sujo de consciência rock numa matriz house. Ao seu ritmo, Lucky Boy entretém como poucos mas essencialmente recorda-nos texturas rítmicas que julgávamos perdidas na memória colectiva. Ou seja, é funcional nas recordações que suscita e menos interessante na novidade que governa.
Lucky Boy não é nem será o momento chave na revitalização do fenómeno french-touch, pelo menos como o conhecemos de momento. Não que não o pretenda ser, como assim se expressa, mas simplesmente o que hoje em dia se entende por french-touch é radicalmente diferente das premissas instituídas em finais de 90 por uns Daft Punk, Cassius ou Alex Gopher. Por isso mesmo, e o disco soando em loops samplados como os melhores de há 10 anos atrás – que por sua vez já recriavam à luz da tecnologia digital a agilidade técnica manual de há 30 anos –, perde um pouco pela falta de oportunidade que o início desta década lhe poderia ter dado. Com isto não se pretende afirmar que esteja deslocado no tempo, apenas que o sentimento genuíno do french-touch que carrega talvez fosse acolhido com outros olhos quando o mundo para aí estava voltado.

THIEF
SUNCHILD
A alvorada suou. E o Sol já escorre a sua luz pelas colinas. Só quem ainda não tenha acordado do sono quase perpetuo é que ainda não se apercebeu que a folk está a ser recuperada pela mesma geração que à 10 anos atrás decidiu recuperar da memória comum velhos paradigmas jazz e soul e integra-los num novo contexto digital – e dançavel ao ponto de atrair a dance scene mundial para novos propósitos estéticos. Axel Reinemer e Stefan Leisering, núcleo duro dos Jazzanova e arquitectos do Extended Spirit, fazem parte dessa geração pioneira que, muito graças à capacidade de interiorização da matriz musical afro-americana e dispondo dos equipamentos e da técnica perfeita, conseguiram dar forma aos sonhos que antes soavam irrealistas.
Com um certo desvanecimento do nu-jazz e a ambição de seguir em frente – parando por momentos de olhar para os últimos 10 anos de actividades – o que começou por ser uma simples curiosidade compilada em volumes de Secret Love, tornou-se num objectivo transformado em projecto sério: Thief. O que nos chega agora é o álbum de estreia de um projecto que une os dois Jazzanova a Sasha Gottschalk. Sunchildé um conjunto de formas que se ergueram da inspiração de um trio disposto a ter a guitarra acústica em riste e uma voz serena em busca de acção instigadora. Disposto, também, a impor a emigração da alma do centro urbano para o campo rural.
Que não haja dúvidas: a escrita de canções é a premissa para toda a operação. E, em busca de um virtuosismo orquestral que nada deve à ingenuidade, procura-se a perfeição estética de uma neo-folk liberal que deixa-se ocasionalmente contaminar por partículas digitais. Naturalmente que por aqui não se renegam as raízes que nos anos 60 deram forma à folk clássica de Steely Dan, à envergadura pop dos Beatles ou o soft rock-soul dos Free Design. Nem se ignoram as ferramentas essências na construção de uma estrutura lírica básica.
É certo que nem sempre todas as canções funcionam em pleno, havendo algumas escoregadelas pontuais que descaracterizam o ambiente – “I cant Remember” soa a UNKLE no seu pior. Ou deixam algum amargo na boca como é o caso de “Somewhere” que, numa aproximação desnecessária ao modelo de canção de Erlend Oye, deita a perder uma oportunidade solarenga quando electrónica mitiga a vivacidade do estilo e ofusca uma mística onde supostamente a essência dos sentimentos deveria sobrepor-se à lógica da programação. Nada verdadeiramente muito grave, apenas desnecessário num disco pautado por uma produção imaculada. Afinal, uma imagem de marca dos Jazzanova.


Como o velho se torna novo
Tradição Vs Modernidade? O segredo é utilizar a tecnologia como um aliado criativo e não como inimigo.
Já é uma velha questão. Velha mas inexplicavelmente pouco debatida: a relação do músico moderno com o passado ancestral e a sua atitude perante a tradição. Por aqui vai-se ocasionalmente tentando esmiuçar as atitudes de determinados artistas em relação à matéria gerada durante o período do virtuosismo da composição, durante o período onde os paradigmas se erguiam ao mesmo ritmo que a imaginação dava forma à matéria. Tempos em que criar para além do imaginável podia ser constrangedor. Outros tempos, diriam muitos. A relação da tradição com o modernismo nunca foi pacífica. E em plena era digital, surgem cada vez mais músicos e produtores dispostos a abdicar das tecnologias actuais e abraçarem a composição convencional.
À medida que a tecnologia ao serviço da música se foi desenvolvendo também o facilitismo foi-se elevando. A programação limou arestas á produção, mas também foi limitando a expressão livre, os gestos nobres da espontaneidade e até o próprio desafio funcional na arte de tocar instrumentos. A dependência da máquina é generalizada seja no computador, e respectivos softwares, seja pelos parafernais equipamentos electrónicos que abundam no mercado, que muitas vezes transformam o inculto musical em vedeta ou leigos em profissionais. O talento nato foi sendo substituído pela gratuitidade do simples carregar de botão. A imaginação trocada pela programação easy ou do it your self. Não se estranhe então que a actual música de dança urbana tenha entrado num beco dominado pela comodidade tecnológica.
Como Sam The Kid fez questão de referir numa recente entrevista aqui no Bodyspace, o hip-hop é uma das vítimas da evolução e na minha opinião da própria programação, criando-se loops intermináveis e repetitivos sem sentido e sem espírito. "Hoje em dia é uma indústria que vive muito à pala dos produtores." refere Sam, continuando: "O produtor hoje tem um papel tão relevante ou maior que o próprio rapper." Comentando ainda a ausência de identidade em muitos dos projectos hip-hop actuais: "Os beats em 93, 94, 95 eram grandes sons, os grupos tinham mais identidade e traziam algo para a arte". Mas não se pense que o hip-hop é caso isolado neste mundo dominado pela indústria. A astúcia artística, perspicácia intelectual, a subtileza do conhecimento ou intensidade cultural vão também lentamente desaparecendo de géneros, outrora ricos, como a soul, o r&b, o funk e até mesmo de derivações recentes do jazz moderno como o nu-jazz ou broken-beat. Para não falar na decadência das linguagens de Detroit ou Chicago que após a massificação aviltaram-se, perdendo algum do fulgor criativo.
As excepções existem, como em tudo na vida. E são essas pequenas - e cada vez mais raras - fugas ás regras que qualquer melómano que se preze deve elevar ao estatuto de referência - e talvez paradigma, se o tempo assim o decidir - num mundo cada vez mais uniformizado e descrente na possibilidade de ainda existir espaço para o simples prazer de fazer música com objectivos e nexos arquitectados. Nexos que não extravasem o humanamente tolerável numa conjectura pouco favorável a aventuras desmesuradas. Talvez por isso estas duas propostas aqui apresentadas sejam o perfeito exemplo da vontade de quebrar as barreiras da programação actual, da agudeza de espírito na forma como o passado avito imerge na era digital ou simplesmente como o breakbeat, se usado inteligentemente, ainda pode ser um suporte para mais diversas ideias, configurando e actualizando o tradicional sem que este perca a identidade, criando-se simultaneamente novas e aprazíveis estéticas que vão enriquecendo o presente.

Mummer
SoulOrganismState

Poderá ser um paradoxo tentar encontrar aqui a veia criativa que enriquecia os vasos do virtuosismo de outrora por entre tão sofisticada electrónica contemporânea. Mas acaba por ser o exercício de indagação dos elementos de outros tempos o principal motivo de interesse. O óbvio não é opção nesta operação. O gosto reside na descoberta do rico filão jazz, blues e soul camuflados por entre princípios electrónicos ora dominados por um experimentalismo breakbeat ora em busca de desenvoltura criativa em torno das linguagens de Chicago ou Detroit. Não se estranhe então que o nome deste projecto austríaco, liderado por Stefan Jungmair (ex-Mum), se chame Mummer, que em português poderá ser interpretado como camuflar ou esconder.
Nada haverá a esconder por entre tamanha eloquência. O som de SoulOrganismState, entre o minimalismo electrónico, o funk de 70, o jazz e a importação de referências nascidas no grande delta do Mississipi, proporciona um espectáculo virtual, semi-organico, repleto de coloridos boreais e com peso certo para envergar a bandeira da criatividade sem nunca prejudicar-se com acessórios pleonásticos. Um perfeito exemplo de como a memória convive com a modernidade e de como da fricção dos dois ergue-se um conjunto de músicas que reflectem a vontade de um produtor aventurar-se no desconhecido. E está visto que ainda compensa alguém dar o passo em frente sem ter medo de tropeçar.

Marc Moulin
I Am You
Marc Moulin não é um nome estranho e podemos mesmo concordar com os press releases e considerá-lo uma lenda viva. Músico, um dos responsáveis pelos Telex e os Aksak Maboul, jornalista, produtor, Moulin, de origem belga, é um dos homens mais influentes da música europeia. Responsável por uma discografia invejável, ideólogo da era Placebo, Moulin tem sido reconhecido pelas novas gerações como um erudito disposto a integrar - de mente aberta como sempre o fez - os elementos caracterizadores de cada conjuntura. Saiu da sombra em 2001 com Top Secret, um pouco à boleia da fórmula de St. Germain, perseguiu três anos depois, com Entertainment, um modelo próprio, reforçando a sua personalidade criativa, tendo finalmente acertado neste ano de 2007 no tom certo para música que à muito ansiava voltar a produzir.
I Am You é a amalgama sonora que Moulin já nos acostumou, onde se encaixam o jazz, o funk de outras eras - de ouro! - e o breakbeat funcional e eloquente. A programação abandona a fórmula vigente e exala a formalidade que pretende aconchegar as ideias de fusão de Miles Davis - um dos ídolos do belga - ou a proficiência de Jimmy Smith. I Am You não inventa a roda, muito menos perverte o
status quo, mas faz nos reflectir sobre a capacidade de inventividade de um "velho do Restelo" que não abandona a memória nem rejeita a tecnologia, antes as incorpora na sua retórica. Um exemplo.


AIR
POCKET SYMPHONY

Por vezes o óbvio não está diante de nós. Indagar é muitas vezes o segredo para a descoberta de pequenas pérolas. Talvez seja o que se passa em Pocket Symphony que à primeira vista poderá ser rotulado como a mais ténue expressão de Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel ou o momento menos inspirado desde City Reading mas que na verdade possui todos o elementos para ser um bom disco. Talvez os fãs de Moon Safari tenham alguma dificuldade em entender os propósitos deste disco, mas a dupla francesa já deu, por varias vezes, provas de que a sua música tem obrigatoriamente de evoluir para novos patamares e soltar-se de velhos estigmas. E Pocket Symphony talvez seja esse momento mais expressivo: além de uma viagem pelo oriente em busca da rectidão de espírito, também poderá ser uma introspecção sobre a memória do grupo.
Ao quarto disco os Air criaram o disco menos consensual. Enquanto os saudosistas reclamam pelo charme etéreo de Moon Safari e os aventureiros aguardam por momentos mais experimentais – à imagem de 10.000 Hz Legend –, os franceses mergulham na tranquilidade do mar do Japão. A desilusão para muitos poderá ser imediata, mas para quem não esteja disposto a abdicar da pop celestial, algo ingénua mas extremamente perfumada deverá insistir até encontrar os encantos que, no fim de alguma insistência, acabam por tornar-se óbvios. Os instrumentais partem onde Talkie Walkie parou: "Alone In Kyoto" é o mote para todo o disco. Os momentos mais orelhudos revelam-nos o equilíbrio e a eloquência adquirida com a experiência dos anos, enquanto os mais introspectivos suspendem o tempo no espaço e anestesiam o mundo com quietação.
Em Pocket Symphony temos uns Air mais maduros, de carácter definido, sensíveis ao quotidiano e - entre uma alegria contida num dia de sol e a tristeza tocante num dia de chuva - dispostos a extravasarem-se emocionalmente sem nunca tocarem na excentricidade sentimental fútil. Pocket Symphony não será o melhor álbum de Godin e Dunkel mas também está longe de ser o pior. E apesar de "Space Maker" soar mais a um lado B de qualquer single de Talkie Walkie, este disco possui uma das melhores músicas de sempre dos Air: "Photograph". E enquanto os dois franceses já expressam vontade de fazer um disco mais ritmado, estas pequenas sinfonias de bolso espalham uma serenidade invejável num tempo em que a harmonia sonora mais sentimental é encarada com gracejo. Felizmente os Air – agora com olho no extremo oriente – continuam a convencer o mundo de que é possível fazer-se bonito sem resvalar para o ridículo.
 
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