Sunday, December 30, 2007
 
Electrónica alemã: a actualização possivel em 2007

Há muito que a Alemanha é um dos epicentros criativos mais activos da música electrónica. Apesar de ter contemplado a (r)evolução da cena rave na Inglaterra e o nascimento do french-touch, nunca deixou de ser um pólo criativo único, possuidor de uma linguagem própria – nomeadamente o trance – capaz de disputar os meandros da house com os mestres de Chicago ou reconfigurar as linguagens dos padrinhos do techno de Detroit. Talvez por uma questão de identidade nacional, os alemães nunca deixaram de evocar os Kraftwerk como os pais de uma linguagem electrónica de caris experimental, onde se liam nas entrelinhas os princípios básicos de uma revolução popular prestes a acontecer – e que deixaram muitos ouvidos de prevenção nos finais de 70.

Durante muito tempo a Alemanha foi palco de projectos mediáticos e medíocres que podiam ir de um house trampolineiro e colorido a um horrendo techno carrinho-de-choque. Exceptuando nomes de uma vaga trance emergente (no início dos anos 90) – Jam & Spoon, Alter Ego, Sven Vath, Hardfloor ou Resistance D – pouco mais se podia encontrar à superfície que pudesse convencer quem, com dificuldade, tentava aceder ao material mais underground, centro por excelência onde, ainda hoje, os movimentos nascem e se desenvolvem. E se depressa o trance se massificou à escala global, resvalando para uma epidemia duradoura e sem precedentes, a hora de desenvolver alternativas obrigou muitos académicos alemães a explorar as teorias do minimalismo que entretanto despontavam nos laboratórios da Minus de Richie Hawtin.

A relativamente discreta Basic Channel em Berlim tornou-se num ponto de atracção que foi cativando almas para um techno despojado. Um techno longe dos artifícios electrónicos que tanto caracterizaram as linguagens maximalistas, barulhentas e electrizantes das raves pós acid-house. Seguiram-se em Colónia a Kompakt, onde a tendência cada vez maior para o minimalismo dava a conhecer novos talentos como Wolfgang Voigt, Michael Mayer ou Superpitcher, e a Traum Schallplatten de Riley Reinhold; não ignorando, naturalmente, gente como Thomas Brinkmann ou Ricardo Villalobos, ambos produtores errantes que dividiam a sua vida entre Colónia e Frankfurt, onde também ficaram conhecidos pelos discos editados através da Perlon – relembre-se a série Superlongevity que muito contribuiu para a massificação e uniformização do minimalismo.

Mas a Alemanha não é só sinónimo de techno minimal. Um sem número de projectos editoriais desenvolveram sonoridades nos finais da última década que tanto podiam ir das electrónicas com inspiração jazz/ soul (Compost Records e Sonar Kollektiv) às atitudes rebeldes electro/punk com sabor a anos 80 (International DeeJay Gigolo Records) ou as electrónicas variadas e experimentais como no caso da Morr Music ou a irreverente BPitch Control de Ellen Allien – que desde o momento da afirmação no mercado, tem contrariado o techno esquelético de Colónia apresentado algumas alternativas viáveis para um cenário pós-minimal.

Como o mundo gira sem parar, não era de estranhar uma nova mudança de feitios e caracteres. No início do ano Pantha Du Prince não foi capaz, apesar de um disco muito interessante, de inverter alguma da lógica redundante que marcou o minimalismo nestes últimos anos. Os Digitalism por sua vez não convenceram com a dualidade Daft Punk vs electro-pop de 80 e ficaram-se por uma indefinição estética incapaz de criar uma identidade própria. Mas agora a situação é ligeiramente diferente.

Da Alemanha acabam de chegar três registos bem distintos que vêm provar que o techno minimal pode estar finalmente numa necessária recessão. Três discos que apresentam três ideias que engrossam a música electrónica e orientam as pistas para futuros caminhos: sejam eles uma ideia de regresso ao maximalismo (que encheu de vida as raves de início de 90), à exploração da plasticidade techno-pop em contextos abstractos ou as tentativas de invenção através da reinvenção dos métodos laboratoriais da composição IDM. Boys Noize, Supermayer e Modeselektor: três nomes e três ideias que confirmam um novo investimento sonoro numa nova direcção. O primeiro nome vem de Berlim e lança-se agora na aventura dos discos de longa duração, o segundo é um pseudo-super-grupo que nos traz dois senhores que estiveram envolvidos profundamente na cena minimal de Colónia e os terceiros, também de Berlim, procuram à segunda o reconhecimento negado à primeira. Novos ventos sopram, finalmente. Será para durar?

Boys Noize
Oi Oi Oi

Uma vez mais os Daft Punk andam nas bocas do mundo. Não porque tenham editado material recentemente, ou que a notícia de um novo álbum ao vivo tenha deixado as massas em delírio, mas porque 2007 é o ano em todos acordaram e redescobriram as virtudes de Homework, pegaram nos despojos do electroclash ou do rock e tentam reinventar o paradigma que deu aos franceses a fama de inovadores destemidos. Depois do excelente Cross dos Justice, do modesto Digitalism, de uns pobres Simian Mobile Disco, chega o projecto do alemão Alex Ridha: Boys Noize (projecto que de colectivo de rapazes tem muito pouco).
Oi Oi Oi representa o segundo passo consistente na tentativa de redifinição do paradigma Homework vs Human After All – a seguir aos Justice, naturalmente – ou seja techno-house em colisão directa com uma atitude punk-rock. Por entre os exercícios robustos de regozijos ácidos, apresentam-se peças experimentais que procuram um espaço próprio no universo de Boys Noize. Um espaço relativamente indefinido, negro, duro, áspero, longe do electro/funk habitual e parcialmente oposto aos momentos mais festivos. Oi Oi Oi devolve o vigor, o som e o barulho que as colunas julgavam ter perdido quando se instalou a moda do minimal. É o regresso às pistas dança de uma energia destorcida, intrépida e contagiante.

Supermayer
Save The World

O risco devia fazer parte significativa do jogo. Talvez por isso este é momento mais fraco deste pacote: Save The World da dupla Michael Mayer e Aksel Schaufler (a.k.a. Superpitcher), os Supermayer. Não terá sido por falta de vontade ou iniciativa. Quando o objectivo é a aventura por novos caminhos, o resultado pode acidentalmente resvalar para uma inocência que no fim não beneficia o resultado final. Save The World padece de uma ingenuidade que, não desvalorizando o esforço dos seus autores, assemelha-se a uma fuga precipitada do techno minimal para uma techno pop abstracta e ainda instável – com fugas ocasionais para o funk, o house e a péssima pop ambiental – que tarda em afirmar-se por ideias mais empreendedoras (Asa Breed de Matthew Dear é a excelente excepção).
Save The World não salva o mundo – por pouco não se salvava a si próprio – mas a vontade da dupla em fazer vingar um conjunto razoável de quadradinhos de banda-desenhada sonora, faz com que os momentos de prazer sejam reais e por vezes iluminados. O fim do mundo não se aproxima, mas é bom observar nomes ligados ao techno minimal em busca de novas paragens sonoras.

Modeselektor
Happy Birthday!
Não será fácil a catalogação desta música, muito menos será um trabalho inteligível encontrar as referências que movem estes invulgares produtores alemães. Não o era com Hello Mom! e muito menos será possível com o novo Happy Birthday!. Entre a lógica profícua adquirida pelo conhecimento do mecanismo do breakbeat, o rigor geométrico da house, os desejos imediatos de um hip-hop cibernético, o dubstep aberto a estímulos exteriores, o dub em causa electro e as memórias da electrónica artificial inteligence da Warp de outros tempos, Gernot Bronsert e Sebastian Szary apresentam-se à segunda com a mesma energia, a mesma consistência estética e o mesmo pensamento desusado e aventureiro que os caracterizou no álbum de estreia.
As tipologias que aqui encontramos não foram inventadas hoje, mas a perspicácia de as trabalhar de forma muito pessoal recupera uma visão, não nostálgica, mas uma que nos leva a acreditar que há cada vez mais adeptos do espírito libertino que caracterizou a alvorada das raves (oiça-se "Hyper, Hyper" para perceber), sem problemas de assumir uma escola que marcou uma revolução ou de nos devolver um estilo de programação que se pensava perdido no reino da indolência. E não fosse um disco excessivamente longo, Happy Birthday! seria certamente um disco único em 2007. Nada que não prejudique significativamente a inventividade de algumas peças bem pertinentes.
Publicado originalmente no Bodyspace


I2I
O Tempo Está a Acabar

No momento em que a trajectória da premissa original dos I2I foi alterada, nada voltou a ser o mesmo. E se podemos afirmar que a mudança de curso não foi totalmente perniciosa, não deixará de ser pertinente referir que há música que nasceu para não ter palavras. A desconfiança que ainda existe entre nós em torno de temas hip-hop instrumentais impede a reverência da experiência e afasta algum pretensiosismo estético, que até seria desejavel. Em Portugal, com honrosas excepções de Sam The Kid ou Rocky Marciano, poucos têm investido nesse tipo específico de produção com receio de passarem despercebidos ou de serem incapazes de elaborar um punhado de temas com o mínimo de narrativa sonora.
Os I2I iam no caminho certo. A componente instrumental d' O Tempo Está a Acabar não sofre das limitações mecânicas que outros produtores demonstram na arte da construção dos beats e na criação de envolvências melódicas; aliás Michelangelo e K manifestam um sentido estético correctamente defendido e elaboram um conjunto competente de quadros sonoros apocalípticos que, tendo o trip-hop experimental e soturno como entusiasmante ponto de partida, encontram nos Sofa Surfers de Encounters a verdadeira inspiração. Mas se os austríacos tinham consciência que o quadro apocalíptico sonoro que dominavam ajustava-se à mensagem politica pós-milénio, I2I revelam deficiências na integração dos seus convidados e permitem que as palavras inócuas arruínem os reais propósitos da operação.
Não deixa de haver momentos entusiasmantes em que um conjunto de vozes sem corpo dão a forma desejada à perturbante estrutura que sustenta as ideias maquiavélicas da dupla, mas na grande maioria das vezes os convidados – Regula, Criatura, Fuse, Tekilla e Chullage – distinguem-se por verbalizarem uma escrita pobre, atafulhada e sem grande dignidade, onde o tempo e espaço raramente são respeitados. Para os convidados o ambiente não deixa de ser distante e alienígena, talvez por isso a adaptação a esta sonoridade seja difícil para todos e crítica para os objectivos de Michelangelo e K, que ambicionando uma maior exposição mediática ou uma desneceessária vassalagem ao rap, perverteram lógica da operação e atiraram ao fogo a oportunidade de deixar o seu marco na produção nacional. O que não deixa de ser uma pena.


Kanye West
Graduation

A guerra de vendas entre Kanye West e 50 Cent pouco ou nada acrescentará à história da música deste ano. Nem a eventualidade de uma disputa incentivou os neurónios de ambos para a criatividade pura. Perante os novos registos pouco haverá de pertinente para dizer tanto sobre Graduation ou Curtis. No caso de Kanye West, o rapper de Chicago parece – pela sugestão do título – estar a terminar um ciclo. E enquanto o seu ego e arrogância aumentam e o seu estatuto como supra-sumo do hip-hop norte-americano se eleva mais um nível, a música – que é o que realmente conta – vai lentamente perdendo algum fulgor criativo ou algum sentido lúdico.
Kanye West é um produtor activo. Normalmente não padece da vulgar atrofia que assola muitos dos que fazem do hip-hop ou do r&b a sua vida. Assume-se, orgulhosamente, como um indivíduo que sabe escolher com quem trabalha e que com naturalidade sabe que o segredo para um bom tema nem sempre reside num beat simplista ou numa rima brejeira. O sampler tem sido fundamental como ferramenta de trabalho. Com ele tem esquartejado trechos fantasmas da soul dos anos 60 e eloquentemente organizado uma base onde a força da palavra tem ganho sentido analítico. As orquestrações – umas mais verdadeiras que outras – terão certamente um contributo no ambiente pretendido mas é verdadeiramente na conjunção beat/sampler que encontramos a mola oculta da construção melódica.
Graduation, para que fique bem claro, não é um disco de ruptura. Soa a um fim de cíclo escolar, como se a aprendizagem tivesse chegado a uma conclusão. É um registo hip-hop elegante com muitos pontos de contacto com os dois primeiros álbuns – talvez mais com Late Registration de 2005. A textura rítmica não varia muito, a promiscuidade com a pop mantém-se, as vozes soul de 60 – em tom estrumpfe – marcam a presença habitual e a verbosidade de Kanye confirma-o uma vez mais como um dos mais competentes MC da década. De resto pouco foi acrescentado à fórmula elementar deste hip-hop arraçado de r&b a não ser alguns elementos electrónicos que facilmente reconhecemos de alguma house europeia – nomeadamente os Daft Punk. Resumindo: Graduation soa a pouco, mas não soa tão mal como Curtis do frustrado 50 Cent.


Yesterdays New Quintet
Yesterdays Universe

Vindo de Madlib não será de estranhar que tudo não passa de um logro honesto. Nem será um ultraje acreditar que a forma nada convencional de trabalhar, traga ao mundo um facto que poderá alterar a perspectiva que temos sobre formas de produção. Ou sequer acreditarmos que um disco hip-hop não se assuma como tal e que o jazz seja a ferramenta mais utilizada para construir um disco que também não é jazz perante um grupo restrito de puritanos do free-jazz. Mas por estas linhas se cozem as ideias que constituem o quinteto virtual de um dos mais proeminentes produtores alternativos do hip-hop norte-americano: o Yesterdays New Quintet.
É bom lembrar que Madlib é imparável e que a sua linha de montagem já produziu alguns dos mais impressionantes discos da década. Desde Shades Of Blue a Angles Without Edges ou de Sound Directions: The Funky Side of Life a Madvillainy, passando por um quase sem número de projectos paralelos na Stones Throw e produções para terceiros, Madlib não se tem restringido ao hip-hop como o entendemos na sua forma mais convencional, tem também procurado renovar a linguagem do jazz com recurso à mesa de mistura e ao sampler, que normalmente são instrumentos primários na actividade de um DJ. Instigando não só a produção própria como Madlib, Quasimoto ou Madvillan ou o caso do primeiro disco de Y.N.Q. ou aproveitando o interesse da Blue Note para uma série de reconstruções que fizeram de Shades Of Blue um clássico instantâneo, Otis Jackson Jr. é literalmente o homem dos sete instrumentos dos nossos tempos: tem visão clara do futuro em vez de uma clarividência enevoada, tem marca criativa que o torna num autor autêntico, produz a um ritmo alucinante sem nunca a sua música resvalar para o desinteressante e tem conhecimentos musicais transmitidos pela família - ou adquiridos de forma autodidáctica - que o inspiram no quotidiano.
Neste novo disco do Yesterdays New Quintet o conceito não se fica pela exposição de mais uma série de temas tocados enquanto “colectivo”. É o próprio universo do projecto que é posto à prova: cada "elemento" deste quinteto virtual é incentivado a criar tendo por base as suas referências musicais. Yesterdays Universe é no fundo uma súmula dos estilos dos seus elementos, uma antologia que retrata a visão única dos supostos músicos que constituem um projecto que na verdade se resume a uma pessoa. E se The Last Electro-Acoustic Space Jazz Ensemble, Kamala Walker & The Soul Tribe, Monk Hughes & The Outer Realm, Young Jazz Rebels, Jackson Conti, The Jazzistics, Malik Flavors ou Ahmad Miller não passam de nomes fictícios, já cada um desses mesmos nomes terão uma ligação pessoal a Madlib; possivelmente facetas diversas de um músico que combate diariamente pelo controle de todos os elementos criativos na sua alma.
Tal como Angles Without Edges de 2004, este novo Yesterdays Universe é um empilhamento sonoro impressionante, tanto nas referências - que podem ir de Sun Ra a Miles Davis, do samba ao blaxpoitation -, na forma como a produção sobrepõe sons de forma caótica mas que no fundo cria uma massa jazz robusta ou ainda nas diversas vertentes de um jazz inconformado que criam uma homogeneidade estética sem paralelo nos últimos tempos. É certamente um disco que não entra com facilidade, nem se sente de imediato. Mas depois de descoberto provoca arrepios na espinha e deglute-se com um prazer inestimável. E se não ignorarmos o facto de nada naquele grupo de pessoas criados por Otis Jackson Jr. ser verdadeiro, nada como nos sentir enganados de vez em quando para apreciar um projecto de fantasmas que "tocaram" até hoje a melhor música produzida por Madlib.


M.I.A.
KALA

A jovem Maya Arulpragasam têm se divertido com o sucesso: From Day One, this has been a mad, crazy thing: I say the things I'm not supposed to say, I look wrong, my music doesn't sound comfortable for any radio stations or genres, people are having issues with my videos when they're not rude or explicit or crazy controversial. I find it all really funny. Não se estranhe o divertimento quando existe por entre uma postura provocatória um lado mais inocente que a leva a acreditar que as posições que toma são meras opiniões casuais e não posições politicas próprias. Se Maya não tivesse consciência do mundo em que vivemos até poderíamos acreditar que toda a controvérsia acontece por acaso, mas a verdade é bem mais linear: M.I.A. têm uma mensagem firme que objecta a hipocrisia ocidental em relação aos chamados países do terceiro mundo.
Desde as polémicas com um clipe na MTV – com um apoio explicito à libertação da Palestina – à recusa de entrada em território norte-americano por parte das autoridades de imigração, M.I.A tem se sujeitado a uma certa desconfiança que cresceu tanto em torno da mensagem emanada bem como da postura que tem assumido em público. E se as suas origens familiares a habituaram a perseguições politicas, a sua personalidade segue determinados princípios por respeito ao legado deixado pelo pai – M.I.A. refere-se especificamente à situação missing in action de seu pai – e assume-se como contestaria de um sistema corrompido pelo dinheiro.
Depois de uma estreia auspiciosa em 2005, Maya lançou-se em viagens sucessivas. India, Trinidad, Jamaica, Australia e Japão foram algumas das paragens que viriam a inspirar um novo testamento. Uma nova missiva que, não deixando cair a atitude proverbial de Arular, viria reforçar não só a sua imagem rebelde, bem como aprofundar os propósitos que deram a conhecer ao mundo uma das poucas jovens com princípios politicos definidos. Kala é, agora, esse tão aguardado recado ao mundo: um manifesto que tanto se disponibiliza a dar no "cravo" como na "ferradura".
Uma vez mais a voz peculiar de M.I.A. não vem ao mundo despojada de ritmos robustos. Com a colaboração de The Wilcannia Mob, Diplo, Blaqstarr, Timbaland e especialmente do produtor Switch, a jovem britânica de origens Tamil, não esconde a África como ponto de referência geográfica de uma sonoridade cada vez mais ambiciosa, mas também mais abrangente: o dub da Jamaica ganha protagonismo, o grime reflecte a angústia dos guetos suburbanos de Londres, o samba movimenta-se dissimuladamente, o disco-house quase "pimba" distrai a humanidade para acepções hedonistas, a música do mundo – em especial as texturas indianas – expõe um conhecimento que vai para além dos monumentos mais emblemáticos. Mas é em África que Maya se movimenta com naturalidade. É no continente negro que encontra a inspiração selvagem e que se sente com profunda apetência para berrar ao mundo com sentido oportunista.
Kala deseja veemente glória, tem sede de vingança, é como um animal em fuga do cativeiro que corre pelo mato não em busca de um novo dono mas em busca de uma nova sensação de liberdade. "Hussel", "Birdflu", "World Out" e "Boyz" são sem dúvida momentos perfeitos que reflectem essa ideia de um bicho em livre arbítrio após o cativeiro. "Bamboo Banga" e "Jimmy" já aproveitam para diversificar a paisagem com tons exóticos indianos. O bravio "Mango Pickle Down River" reverencia o hip-hop claustrofóbico com um sopro didgeridoo australiano em espirais hipnóticas. O resto do disco, talvez mais domesticado, aproveita para reservar espaço a uma sonoridade com um apelo pop que tanto permite a presença de Timbaland em "Come Around", como o gangsta-pop provocante de "Paper Planes". Tudo em bom-tom, mas longe de banalidades.
Aliás essa é uma das qualidades de Kala. Para além da diversidade estilística, todos os temas vivem de um equilíbrio entre o lado mais selvagem dos ritmos e as texturas mais ambíguas de uma electrónica em estado experimental. Mais-valia equacionadas num joguete onde M.I.A. tenta inteligentemente virar o rato contra o gato. Estratégia essencial no mundo em que vivemos, isto se pretendemos uma alternativa ao status quo em que a humanidade vive encalhada e do qual ainda não se preocupou em libertar.

Bjørn Torske
Feil Knapp

Uma vez mais o norte da Europa. Especificamente a Noruega como ponto central no velho continente onde o frio provoca convoluções na electrónica e a transforma numa manta onde diversas tipologias são retratadas e elaboradas em ponto de ebulição. O resultado não será mais que uma mescla quente que evoca um certo prazer sem ser excessivamente hedionista, que devolve o verdadeiro sentido da especulação à arte e ainda sente a necessidade de expor uma visão singular sobre a matéria-prima, implodindo-a a partir do seu núcleo. O resultado é quase um espectáculo de partículas que se espalham pelo tempo e espaço. Um espectáculo visual que entusiasma quem com regularidade vai tomando conhecimento do melhor que se vai produzindo nesta área.
Lindstrom, Prins Thomas, Todd Terje e uma vez mais Bjørn Torske são alguns dos nomes noruegueses ligados à música electrónica que rejeitam as conjecturas da indústria e constroem retratos sonoros invulgares sem num único momento criarem corpos estranhos e irreconhecíveis. Ou seja, lidam de forma pragmática com a arte, não rejeitam as tipologias mas conseguem devolver alguma ingenuidade à música que aprenderam a gostar na adolescência. A obsessão pelo disco-sound é prova evidente dessa ideia: institui-se um paradigma e lentamente ele vai sendo decomposto e digerido pela especulação inocente a que todo o artista devia ter direito por mérito próprio.
Não sendo muito preciso colocar Torske na mesma bagageira de Lindstrom ou Prins Thomas, e apesar de existirem neste Feil Knapp pequenos pontos de contacto – "Hatten Passer" e "God Kveld" –, a obsessão de Torske neste novo disco é o dub e não tanto o disco-sound. É na Jamaica que o autor encontra a fonte de inspiração, é de lá que é reconhecemos a capacidade de erguer texturas melódicas que vão ecoando pelo tempo. Nem sempre identificamos o dub de forma óbvia, como em "Spelunker" – primoroso Spektrum 128K vs Augusto Pablo – ou "Kapteinens Skjegg", amíude ele camufla-se por entre o disco, o house baleárico ("Loe Bar") e outras precursões com origens pouco consensuais – "Tur I Maskinparken" ou "Møljekalas".
Os devaneios são saudáveis, charmosos e expressivos. A música evoca liberdade e uma melancolia sã, ela revela o tempo que calmamente levou a ser preparada – o último disco de Torske data de 2001. Tudo o que é exposto ouve-se num ápice como se se tratasse de uma música propositadamente light e de consumo instantâneo. A abrangência estilística é deleitante e eloquente, visivelmente resultante de uma inteligência que tem noções claras de como a operação em estúdio deve decorrer – e de como se devem atingir os objectivos. Bjørn Torske tem finalmente mérito próprio, soube decompor a matéria e teve tempo para a digerir. Transmite uma sensação de ingenuidade mas sabe bem que aí reside a mais-valia de um som que vê uma série de partículas assentarem no sítio certo. O espectro de Feil Knapp é integro e de muito bom gosto.


MÚSICA SOUL NASCIDA NA ALEMANHA: VERDADEIRAS SESSÕES COM ALMA

A velha retórica filosófica poderá definir a alma como algo imaterial, inexistente para além de uma auto-consciência de valores éticos e morais erguidos por religiões impregnadas por paradigmas de orientação espiritual. E se enquanto vivos acreditamos que temos uma alma capaz de despoletar emoções e competente para distinguir o bem do mal, já haverá dúvidas sobre que caminho toma a mesma depois da morte. As religiões não se poupam a certezas. As doutrinas de cada uma assim o provam. A ciência dúvida. As filosofias especulam. No fim, o homem acreditará no que quiser, apesar das religiões serem as que melhor conseguem “materializar” o ser e a sua essência num “pacote” único.

O homem saberá melhor que ninguém a necessidade de exteriorizar emoções. A angústia tem e sempre teve um aperto singular na expressão da alma. No caso da música soul, e em especifico o embrião que foi o gospel, a manifestação religiosa tomou as rédias de uma expressividade individual que mais tarde se foi politizando. Da raiva, do amor, da necessidade de liberdade até a uma afirmação racial de princípios próprios, a música, que começou por ser entoada em campos de trabalho e depois generalizada em encontros religiosos, tornou-se no veículo por excelência de verbalização de revoltas individuais, de denúncias de opressão.

É historicamente inegável que muita da música contemporânea tenha nascido num caldeirão afro-americano onde o confronto descarado entre a angústia e uma alegre liberdade espiritual tenha sido o principal motor para a erecção de paradigmas fundamentais que ainda hoje subsistem na nesta cultura multiracial. Da interpretação da bíblia às primeiras entoações religiosas em vozearia black gospel music, das praise songs aos acordes blue note que inspiraram os blues, do ragtime do final do século XIX ao jazz, da miscelânea rhythm and blues às primeiras harmonias rock, do funk ao hip-hop, a matriz sonora afro-americana cresceu e evoluiu para além do bundo que dominava as choças da escravatura para um conjunto de linguagens suburbanas – hoje completamente refinadas.

A alma tomou forma como música bem para além das velhas teorias filosóficas. Ela tornou-se viva, consciente e material através de acordes instrumentais e vocalizações. Aliás é na voz que a alma se expressa. É a voz que formaliza o conceito soul, que constrói uma identidade estética que dá forma a emoções ora alegres ora tristes. É nela que se tornam transparentes alguns costumes seculares: a tradição religiosa e o respeito pelo núcleo familiar.

Com o evoluir das ultimas décadas, a música soul foi se caracterizado. De Sam Cooke a Ray Charles, de Little Richard a James Brown, da Stax Records – onde militaram Otis Redding ou Isaac Hayes – à concorrente Motown – onde cresceram vozes singulares como Marvin Gaye, as Supremes, os Temptations ou os Jackson 5 – a soul music cresceu e deu ao mundo alguma das mais tocantes músicas, algumas mesmo intemporais, sugerindo todas elas uma certa sensação de alívio e um prazer espiritual capaz de devolver luz às trevas.

Além de um evidente negócio para muitas corporações, há ainda alma na música soul, ainda há um coração que bate para além dos lucros. Mas mais importante, e talvez muito ignorado nos últimos anos, ainda existe uma capacidade de distanciar-se dos piores exemplos estilísticos do r&b – para não falar de uma propositada intenção das majors em confundir a música soul tradicional com a tradição mais abrangente de um r&b aberto aos mais disparatados estímulos. A música soul de cariz tradicional tem tido a sua evolução natural, a instrumentalização tornou-se mais eloquente, as electrónicas fizeram-se sentir. Mas se o termo tradicional se poderá aplicar mais a um tipo de escrita, a tradição também poderá ser posta à prova com a introdução de ideias capazes de estimular a criatividade dos seus autores, bem como entusiasmar quem aprecia um género que se estima pelo aparente conservadorismo da sua ideologia.

Apesar de nos últimos anos a soul andar perdida num labirinto criado pelo r&b brejeiro de Hollywood e por vezes ser refém de uma determinada imagem criada pela MTV, ainda surgem nomes fora do típico circuito – femininos, no caso que este artigo apresenta – interessantes o suficiente que, sem estarem presos ao eterno filão da Motown, da Stax ou Fame, criam com os mesmos sentimentos que moveram Gladys Knight, Aretha Franklin ou Carla Thomas e, numa aparente comunidade virtual, comungam interesses com vozes contemporâneas como Jill Scott, Erykah Badu, India.Arie, Meshell Ndegeocello.

Ayo e Joy Denalane são jovens e nasceram na Alemanha. Ambas vêm o mundo à sua maneira. São duas formas de interpretação. Dois tipos de formalidade soul em que ambas prestam homenagem aos clássicos e simultaneamente abrem a porta para um abrangência estilística que enriquece o cânone da soul no mundo. Eis os mais interessantes registos soul dos últimos tempos.


Ayo
Joyful

Nascida na Alemanha, criada por pai nigeriano e mãe romena, Joy Olasunmibo Ogunmakin apresentou-se ao mundo em 2006 como Ayo. Joyful é o primeiro resumo de um percurso que também passou por Paris. E não sendo um perfeito exemplo sonoro que tenha captado a música do mundo é um facto incontornável que a música de Joyful transborda algumas das mais belas influências da soul clássica norte-americana sem nunca negar as raízes da sua autora. Não influi, nem se deixa contaminar pelas referências mais óbvias da soul, folk ou do reggae. Também não é a típica soul que a América nos tem habituado. É apenas a música que a sua autora queria que fosse: a vocalização dos seus desejos, dos seus medos, dos seus amores. E escreve por respeito ao legado familiar e pela deferência a Deus. Tudo vai acontecendo de forma normal e até inocente. Evoluindo espontaneamente por entre acordes de guitarra em tom folk e precursões elementares com o cheiro da terra africana nos pés. Joyful soa falsamente rústico. Revela uma invulgar eloquência na composição. É solarengo, quente, húmido. É afectuoso sem incomodar com abraços complacentes mas obsequioso na forma como envia a sua mensagem à alma humana.




Joy Denalane
Born & Raised

Sentido ainda um certo complexo pela forma como cresceu na cidade de Berlim, como foi educada por pais de origem sul-africana e como a soul a influenciou como pessoa, ao segundo disco Joy Denalane revela-se finalmente ao mundo. Depois de Mamani de 2002, Born & Raised confirma as ideias e propósitos que levaram Denalane a decidir-se pela música a tempo inteiro: a necessidade de comunicar, de explorar a luz da verdade, de rogar a Deus e agradecer pela pessoa que em se tornou.
Produzido em Filadélfia, a soul de Born & Raised é na maioria das vezes genuína e séria. O hip-hop estabelece a cadência e a inspiração no gospel domina a acção sem embaçar desnecessáriamente o pretendido. A voz denota uma certeza profissional e profícua na comunicação com outros espíritos. Este segundo registo da alemã não será radicalmente diferente dos propósitos neo soul que trouxeram ao mundo discos como Who Is Jill Scott? Words and Sounds Vol. 1 de Jill Scott, Mama's Gun de Erykah Badu ou My Life de Mary J. Blige (do qual é fã assumida).
A colaboração com Lupe Fiasco ou Raekwon não é uma inocente mais-valia que mostre um distanciamento da neo soul tipificada na América. Born & Raised ganha quando pensa e fala por si ou se deixa contagiar pela escola soul de 60; quando se inspira na vida de Joy Denalane e se torna um registo algures entre o biográfico e a observação do quotidiano. Mas também perde um pouco do que poderia ter sido quando se distrai em alguns maneirismos r&b. Nada que a simpatia que derrama não faça esquecer num ápice
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    REFLEXÕES
    "Em geral, sempre que há¡ algo melhor, há também algo óptimo. Mas, dado que entre as coisas que existem, uma é melhor que outra, há também uma coisa óptima, e esta seria a divina. "
    Aristótles


    "De todas as artes que conseguem crescer no solo de uma dada cultura, a música é a última das plantas a germinar, talvez porque é a mais interiorizada, e, por conseguinte, aquela cuja época vem mais tarde é o Outono e a desfloração dessa cultura. A alma da Idade Média cristã encontrou a sua expressão mais acabada na arte dos mestres holandeses: a arquitectura musical por eles elaborada é a irmã póstuma, não obstante legí­tima e igual em direitos, da arte gótica. Foi na música de Haendel que tomou forma musical aquilo que de melhor havia na alma de Lutero e dos seus, esse acento judaico-hebráico que deu á Reforma um certo ar de grandeza: o Antigo Testamento faz música, o novo não. Mozart, o primeiro, restituiu em metal soante todas as aquisições do século de Luí­s XIV e a arte de um Racine e de um Claude Lorrain. Há na música de Beethoven e de Rossini que a melodiosamente respira o século de XVIII, o século do devaneio, do ideal destruído, da fugaz felicidade. Toda a verdadeira música, toda a música original, é um canto do cisne. Talvez a nossa música moderna, seja qual for o seu império, e a sua tirania, tenha diante de si apenas um curto espaço de tempo, porque surgiu de uma cultura cujo solo minado rapidamente se afunda, de uma cultura que em breve será¡ absorvida."
    Friedrich Nietzsche In Nietzsche Contra Wagner.


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